O direito ao trabalho e à memória
Por que os agricultores do Parque Estadual da Pedra Branca devem permanecer lá?
Moradores do Rio de Janeiro creditam há anos à Floresta da Tijuca o título de “A maior floresta em área urbana do planeta”, porém, se enganam redondamente, pois, este título pertence ao Parque Estadual da Pedra Branca, três vezes maior. Criado em 1974, o Parque fica na Zona Oeste do Rio de Janeiro, ocupa 10% do território da cidade e se estende por 17 bairros, entre eles Campo Grande, Jacarepaguá, Vargem Grande e Recreio dos Bandeirantes. Os privilegiados que usufruem do parque, cerca de 36 mil ao ano, segundo o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), aproveitam as paisagens naturais ainda bastante preservadas, a vegetação típica de Mata Atlântica com muitos cedros, jequitibás, ipês e jacarandás, têm o privilégio de observar algumas das 338 espécies de aves, 51 espécies de mamíferos e 42 espécies de peixes, muitos deles ameaçados de extinção como a ave tiriba-de-orelha-branca, o mamífero morcego-fruteiro-claro e o peixe-das-nuves, isso sem contar com as muitas construções históricas, ruínas e sítios arqueológicos presentes nos seus quase 13 mil hectares.
Aqueles que não conhecem o Parque abrem mão não só de desfrutar da natureza abundante, mas, de conhecer parte da história e da memória do Rio de Janeiro e, por que não, de atuarem como fiscais seja da natureza, seja da preservação da história e da memória da população incrustada na floresta. Afinal, até hoje, descendentes de escravos das antigas fazendas da região e de famílias de migrantes, na sua maioria de nordestinos, que chegaram na floresta ainda no século XIX e fizeram dela o seu lar, lá aprenderam a plantar e a tirar o seu sustento e de suas famílias com a produção e a comercialização de bananas, caquis, aipim e hortaliças. A lei sancionada há mais de três décadas previu a preservação da floresta e dos mananciais ameaçados pela expansão urbana, proteção e revitalização das construções históricas, ruínas e sítios arqueológicos, além de proporcionar meios e incentivos para atividades de pesquisa científica e monitoramento, permitindo assim que os visitantes, hoje e no futuro, aproveitem plenamente o Parque.
No entanto, as existências de discordâncias entre o Governo e os moradores da Pedra Branca estão longe de um desfecho. Se por um lado a lei previa uma série de desapropriações para que, sendo o único “dono” do Parque, o Estado garantiria que o restante fosse cumprido, os agricultores donos da terra há mais de um século não aceitaram deixar nem seus lares nem seu trabalho. Desta forma, surgiram a Associação de Agricultores Orgânicos da Pedra Branca em Rio da Prata (AgroPrata), a Associação de Agricultores de Vargem Pequena (AgroVargem), a Associação dos Lavradores e Criadores de Jacarepaguá (Alcri), entre outras e receberam ainda o apoio de parceiros interessados em colaborar, apoiar e lutar para a manutenção dos agricultores dentro do Parque. Entre eles, a Fiocruz através do Profito Pedra Branca – Projeto do Núcleo de Gestão em Biodiversidade e Saúde de Farmanguinhos (NGBS), na capacitação dos agricultores para o plantio de plantas medicinais para abastecer a indústria de fitoterápicos. Meio a esta divergência de opiniões, moradores e funcionários do Parque dividem a rotina diária.
Em agosto de 2014, a localidade conhecida como Cafundá Astrogilda recebeu da Fundação Palmares o título de Comunidade Quilombola. Entretanto, esta história repleta de belezas naturais e fatos históricos não foi impedimento para uma série de desavenças enfrentadas há anos pela população de agricultores da Pedra Branca. Para Sandro Santos Silva a permanência dos moradores no Parque, assim como a manutenção das atividades agrícolas, responsável pelo sustento dos moradores, é mais do que uma questão de direito. A nossa comunidade vive aqui desde 1800. Somos descendentes de escravos da Fazenda de Vargem Grande. O povo da floresta é dono de um saber tradicional, algo único que não se ensina na escola e sabe melhor do que ninguém cuidar do meio em que vive, pois depende dele para viver. Toda essa gente se fundiu com a floresta em um processo de simbiose, é um povo com uma cultura única e o melhor: bem no meio a cidade do Rio de Janeiro, defende.
Problema social não é crime ambiental, defende ambientalista
A questão que envolve os agricultores da Pedra Branca é bastante polêmica e encontra entre os próprios defensores do Meio Ambiente opiniões bastante diferentes. Fato é que a lei 9985 de 2000 do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), é muito clara: parques são categorias de conservação da natureza que não aceitam gente dentro, não aceitam presença humana. Enquanto o INEA quer fazer valer e a lei é retirar os moradores, os moradores querem valer o seu direito à terra, à trajetória de seus antepassados e à sua própria história. A comunidade agrícola da Pedra Branca é historicamente localizada, desenvolvem esse ofício, essa atividade há muitos anos e, por algum motivo alheio à vontade deles, ficaram inseridos no Parque. A questão é que moradores, sejam eles de que classe social for, se for um condomínio, ou se forem agricultores, têm que ser indenizados. Muitos já venderam suas terras e partiram de lá convencidos pelos órgãos ambientais que a presença humana é incompatível à conservação da floresta. A primeira grande diferença é que quem mora em condomínio tem algum poder aquisitivo, contrata um advogado e briga com isso. E aquele que não tem? Esses são a turma dos “sem-papel” e, como não podem provar a propriedade, vivem em constante ameaça. Para Dra. Anelise Fernandez, professora da Universidade Federal Rural, a criação do Parque tornou os moradores “invasores”, afinal, “os parques correspondem a uma área restritiva de área protegida que, por determinação legal, impede a permanência de população em seu território”.
Já Alba Simon, ex-Diretora de Unidade de Conservação do Instituto Estadual de Florestas-IEF, atualmente conhecido como INEA, tem uma visão diferente de muitos outros defensores do meio ambiente em relação aos moradores do Parque: “Primeiro, eles são agricultores, não são madeireiros, não são caçadores, eles são agricultores. Portanto, eles plantam comida. Jogá-los para a periferia, para uma comunidade de baixa renda, uma favela, é agravar o problema social e não reconhecer o valor que eles têm de serem agricultores”, argumenta. Para ela as áreas protegidas não podem excluir o homem. Eu não consigo entender, eu não tenho essa visão biocêntrica ou ecocêntrica que a gente da Academia gosta de dizer. Que a natureza é por si, enfim, a natureza é mais importante do que o homem, que o homem não faz parte do meio ambiente, que sociedade não é parte do meio ambiente, defende. Alba acredita que não há uma visão social dentro dos órgãos públicos, dentro dos órgãos que tratam da questão ambiental. Não há uma visão social, há uma visão estritamente de conservação de biodiversidade: Minha discussão é que na administração pública ainda continua havendo uma visão que eu chamo de “parquista” ou “conservacionista-preservacionista”, que é essa visão de – por incrível que pareça – de “invisibilizar” essas comunidades. Então, elas não são vistas, elas não são reconhecidas e, portanto, muito menos respeitadas. Ainda, na opinião de Alba, os agricultores da Pedra Branca vivem o medo, o pavor, o ódio e a desintegração total do Parque há mais de trinta anos e os gestores não se dão conta de que os moradores foram incorporados ao Parque. Limitaram o seu território sem pedir licença, sem nenhum tipo de diálogo. Há de se mudar a visão, há de se trazer esse grupo - é preciso, é necessário – pra ser parceiro da conservação e não inimigo da gestão pública. Por fim, o que é um problema social deve ser tratado como tal e não transformado num crime ambiental, enfatiza. O que parece é que há sim uma maneira de se fazer uma parceria. O que não há é uma visão moderna. O que não há é uma visão social dentro dos órgãos públicos, dentro dos órgãos que tratam da questão ambiental. O Chefe do Parque, Alexandre Pedroso Marau, é bem mais otimista e garante que há, por parte da administração, um esforço no sentido de construir uma política de união entre o governo e as associações, visando o bem de todos os moradores e do Parque.