O fim do sossego

Quilombola é atropelado por plano para parque estadual


Bota sossego nisso. O casal Jorge Cardia Valois e Christina Correia dos Santos mora em meio à Mata Atlântica, a 600 metros de altitude. Sem filhos, os dois vivem numa casa simples de alvenaria, com quarto, sala e banheiro. A cozinha – com fogão a lenha – fica do lado de fora. Há uma mesa grande, rústica, de madeira, onde são servidas as refeições e trocados os dedos de prosa.

“Cresci aqui mesmo, numa casa de pau a pique”, conta Valois. A vida ao ar livre lhe fez bem, sem precisão de qualquer luxo. Esbelto, ele aparenta menos do que seus 55 anos, todos eles vividos na região que em 1974 foi demarcada como o Parque Estadual da Pedra Branca, no limite oeste da cidade do Rio de Janeiro. “Tudo o que tenho veio da agricultura, do meu roçado aqui, e fui construindo aos poucos.”

Valois descende de quilombolas que fugiram para a floresta e lá ficaram quando foi assinada a Lei Áurea, em 1888. “Os pais dos meus avós já viviam aqui. Sempre ouvi falar que eram escravos.” Outros agricultores da área contam a mesma história, como Pedro dos Santos Mesquita, que mora um pouco mais abaixo. “Minha família está aqui há cinco gerações.”

A casa de Valois e Christina fica num local de difícil acesso. Depois que a estrada termina, é preciso percorrer meia hora de trilha, pulando obstáculos como raízes, galhos caídos e pedras. Por causa da floresta, à primeira vista nenhum ser urbano adivinharia que ali existe uma roça. Mas, plantados no meio de jacarandás, jequitibás e outras árvores nativas, o casal colhe mandioca, milho, batata, banana e caqui. A produção é vendida aos sábados, na feira da praça da Freguesia, no bairro de Jacarepaguá.

A estrada até a trilha, de terra e estreita, só permite a passagem de um carro por vez. É preciso força do veículo e habilidade do motorista: em alguns momentos, o caminho passa por pontes improvisadas, pedregulhos e barrancos de dar frio na espinha. Quando chove, os riachos viram rios e o caminho fica intransitável. “Tem que esperar, não tem jeito. Ninguém passa”, diz Francisco Caudeira, um agricultor rechonchudo que acompanha a subida. A mata em volta é fechada e ocupa cerca de 10% da área total do município do Rio do Janeiro. À sua volta estão os bairros de Guaratiba, Vargem Grande, Bangu, Realengo, Jacarepaguá, Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes, Grumari e Campo Grande.

Os pequenos agricultores não são os únicos moradores do parque. Quem sobe a partir de Vargem Grande – há outros acessos – se depara com uma mansão, em que, apesar dos muros altos, é possível ver uma cachoeira natural que enche a piscina, em meio a um gramado verde e bem aparado. No portão, a placa “Vende-se”. Do lado de fora, há um posto da Unidade de Policiamento Ambiental. Ao único policial no local, pergunto se sabe o valor do imóvel. “Dizem que está em uns 2 milhões de reais”, responde. “Quem não quer uma casa dessas, com segurança de graça?”, provoca o guia Caudeira.

Na casa de Valois e Christina, a sensação é de completo isolamento. As cartas não chegam, mercadorias não são entregues. Há, no entanto, energia elétrica – “E é legal”, afirma ele. As contas e correspondências são enviadas para a casa de parentes.

 

Sucessivos governos estaduais vinham fazendo vista grossa para a existência do casal e de outros pequenos agricultores na área de proteção ambiental, até que, em junho deste ano, foi publicado no Diário Oficial o Plano de Manejo do Parque Estadual da Pedra Branca. O documento elaborado pelo Instituto Esta-dual do Ambiente, o Inea, regula a utilização e a conservação do parque e ratifica a proibição de qualquer agricultura no local.

“O parque foi criado para garantir a floresta, a biodiversidade, o patrimônio geológico, e isso, obviamente, em algum momento conflita com a existência das atividades agrícolas”, diz Eduardo Lardosa, chefe do Serviço de Planejamento e Pesquisa Científica do Inea, em sua sala na sede do órgão, no Centro do Rio. “Quando você cria uma unidade de conservação, principalmente de proteção integral, o interesse da sociedade prevalece sobre interesses particulares, de uma ou outra pessoa ou de pequenos grupos.”

O próximo passo do Inea, segundo Lardosa, é cadastrar todas as ocupações na área de proteção, cujo maciço, em seu pico, chega a 1 024 metros de altitude. “Vamos estudar caso a caso, estamos cientes de que há pessoas que tiram de lá sua sobrevivência e que estão historicamente ligadas ao local”, diz ele, sem mais prometer. O que acontecerá com os ocupantes só será definido no fim do cadastramento.

No alto do parque, distante dali quase 30 quilômetros, Valois acha que já estabeleceu simbiose com a floresta e só teme perder as raízes e o sossego. Ele divaga, com medo, sobre o futuro. “Não me vejo em outro lugar. Se eu sair daqui, me perco como ser humano. Não é que não saberei o que fazer. Não vou saber mais quem sou”, diz, enquanto olha para o alto, como se procurasse a solução na copa das árvores.

O ritmo de Valois e Christina contrasta com o do resto da cidade. Juntos há 25 anos, eles acordam às cinco da manhã e já estão na cama no mais tardar às 19 horas. Suas falas têm um ligeiro sotaque, que lembra o mineiro. O isolamento, porém, não significa alheamento político. Pela tevê, ligada a uma antena parabólica, ou pelo rádio de pilha, Valois acompanha o noticiário. “Não votei neste que está aí no governo do estado. Sempre escolhi os mais fraquinhos, os que sempre perdem. Espero não ser agora um desses.”

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Artigo do Jornalista Nonato Viegas.  Texto originalmente publicado na Revista Piauí nº 85.