Carta aberta à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em favor da Produção Artesanal, Familiar e Comunitária e da Alimentação Saudável.

A construção da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional vem evidenciando os graves problemas à saúde gerados pela ampliação da oferta e do consumo de alimentos industrializados ultraprocessados e a necessidade de valorização, resgate e disseminação de práticas alimentares e da culinária que preserve a cultura, a biodiversidade e a autonomia das diversas regiões do Brasil.
No entanto, a legislação sanitária permanece construída dentro do paradigma da produção agroindustrial. Os padrões de qualidade expressos nas normas sanitárias para o processamento de alimentos reforçam uma lógica excludente e concentradora, por se basearem em um modelo de produção agroindustrial em larga escala, padronizados e com uso intensivo de insumos químicos (como agrotóxicos, aditivos, conservantes, etc.), em detrimento de sistemas mais sustentáveis, cujo apelo social busca produtos diversificados, artesanais, de conhecimentos tradicionais e socialmente includentes. As exigências sanitárias têm levado a produção de alimentos tradicionais, artesanais, de base familiar, a um processo que os aproxima da industrialização e da artificialização, aumentando custos e afastando-os de sua origem artesanal e de características socioculturais inerentes ao modo de produção que historicamente caracteriza esses produtos.
Atualmente, há uma multiplicidade de competência de órgãos de regulação e fiscalização sanitária (SISVISA, MAPA-DIPOV e MAPA-DIPOA, estados e municípios), com um conjunto enorme de portarias, normativas, resoluções, de difícil acesso e compreensão para as famílias produtoras e que não levam em conta, na análise de riscos, as realidades locais e regionais e não diferenciam escalas de produção.
Diante dessa situação, uma mesma agroindústria familiar precisa se reportar a diversos órgãos apenas para a sua regularização sanitária, sem contar exigências de órgãos fiscais e ambientais, por exemplo. Isso torna extremamente difícil a legalização destes setores produtivos, caracterizados pela diversificação de cultivos, possibilidades de processamento e sazonalidade de sua produção.
Neste contexto, os movimentos e organizações signatários deste documento, apresentam as seguintes considerações e propostas:
1 - Normas sanitárias relacionadas aos Microempreendedores Individuais, Empreendimentos da Agricultura Familiar e Empreendimentos Econômicos Solidários
Os processos produtivos, de circulação e consumo associados à Agricultura Familiar e Produtores Artesanais, necessitam de uma legislação específica. Tais processos são frutos de saberes e fazeres oralmente transmitidos de geração a geração, de conhecimentos tradicionais construídos, transformados e reiterados ao longo dos tempos e manifestam a enorme diversidade cultural brasileira, e que não significam de forma alguma perda de qualidade e segurança de boas práticas de fabricação.
Neste sentido, foram priorizadas questões relacionadas à construção de um novo marco legal, que promova a inclusão social e produtiva desses atores, retirando-os da marginalidade em que se encontram. Destaca-se a imprescindível participação da sociedade e o envolvimento dos diversos órgãos públicos que tratam do tema.
1.1 - Principais propostas:
- Considerando (i) a complexidade da legislação, pensada na lógica industrial de produção de alimentos, (ii) a desatualização, que vem desde 1952, (iii) a incapacidade de estrutura para registro, fiscalização e orientação, propõe-se a criação de uma instância interministerial mediada pela Casa Civil, com participação da sociedade civil para definição de arcabouço legal unificado e simplificado com objetivo de regularizar a produção artesanal, familiar e comunitária de alimentos, evitando a pulverização em diferentes órgãos e setores;
- Como medida de urgência, propõe-se a alteração das normas que regulamentam a Produção/Beneficiamento de Polpa de Fruta para os beneficiários definidos na RDC 49, para que estes produtos possam ser regulamentados de maneira descentralizada pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, considerando que a regulamentação de bebidas como Água Mineral, Natural, Adicionada de sais, já são de competência da ANVISA e que a RDC nº 352, de 23 de dezembro de 2002, regulamenta os estabelecimentos Produtores/Industrializadores de Frutas e ou Hortaliças;
- Promover a realização de Convênios ou outros Instrumentos Legais entre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e os integrantes do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), para facilitar a regularização/fiscalização de empreendimentos produtivos de Microempreendedor Individual, Empreendedor Familiar Rural e Empreendimento Econômico Solidário, conforme RDC 49/2013, da Anvisa, nos municípios que não contam com a estrutura do Ministério da Agricultura (MAPA);
- Considerando que as instâncias de regulação e fiscalização descumprem ou mesmo desconhecem o conteúdo da RDC 49/ANVISA é necessário garantir a capacitação de agentes públicos, trabalhadores na agricultura e atores dos movimentos sociais para que se apropriem deste conteúdo;
- Que as instâncias fiscalização do sistema nacional de vigilância sanitária busquem ampliar na composição de suas equipes a interdisciplinaridade, como a inclusão de profissionais da área social;
- Criar espaços para discussão e formulação de conceitos/definições importantes que estão na RDC 49/2013, como (i) classificação de risco, (ii) distinção entre in natura, semi-processado e processado e (iii) cultura alimentar;
- Instituir mecanismo participativo de avaliação de conformidade, para registro sanitário das unidades de processamento artesanal, considerando a atual insuficiência dos órgãos de Estado para fiscalização;
- Construir e garantir meios que viabilizem a comercialização de produtos de origem animal, polpa e suco de fruta para mercado institucional público como PAA e PNAE.


Agrotóxicos

O Brasil vem se destacando como o maior mercado consumidor de agrotóxicos do mundo, com crescimento do comércio superando as médias mundiais. Este consumo excessivo está acompanhado do uso indiscriminado e ilegal de agrotóxicos em culturas para as quais eles não estão autorizados, ou seja, está ocorrendo o uso de produtos no Brasil os quais já foram banidos em outros países, como constata a própria Anvisa em relatórios do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos.
Identificamos também uma deficiência estatal no tocante ao registro dos agrotóxicos que pode ser feito com relativa facilidade, a insuficiência na fiscalização do manuseio e aplicação desses produtos, deficiência de fiscalização de fronteiras a fim de evitar contrabandos, inexistência de monitoramento sobre a contaminação por agrotóxicos do organismo humano, bem como da água, do solo e do ar, deficiências de fluxos de dados e sistemas de informações do SUS, não rastreamento da produção de alimentos, carência de políticas públicas voltadas à pesquisa sobre agrotóxicos e seus impactos à saúde e ambiente, ausência de incentivo à produção agroecológica, entre outras situações.
Assim, considerando que o uso crescente de agrotóxicos afeta tanto aqueles que produzem alimentos quanto aqueles que consomem estes alimentos, bem como trazem impactos ao ambiente, é necessário um conjunto de ações por parte do Estado, para que se assegure o processo de transição do atual modelo produtivo agroexportador para um desenvolvimento rural sustentável e solidário, tendo como protagonista a agricultura familiar de base agroecológica/orgânica.
 
2.1 Principais propostas:
Nossa principal proposição é que o governo elabore e implemente uma Política Nacional de Controle e Redução do Uso de Agrotóxicos e de Fomento à Produção de Alimentos Saudáveis, de dimensão intersetorial e com ampla participação da sociedade brasileira, em especial os movimentos sindicais e sociais do campo, a fim de:
- Banir imediatamente os princípios ativos já banidos em outros países, com comprovado impacto à saúde e ou ao ambiente;
- Instituir Lei Federal para proibição da pulverização aérea e de controle da pulverização terrestre mecânica e costal, estabelecendo a distância mínima de 500 metros de povoações, cidades, vilas, escolas do campo, mananciais de água e criação coletiva de animais;
- Ampliar a fiscalização das condições de trabalho dos(as) trabalhadores(as) expostos aos agrotóxicos, desde a fabricação na indústria química até a utilização na lavoura e o manuseio no transporte;
- Fortalecer mecanismos de fiscalização nas fronteiras a fim de evitar a entrada de agrotóxicos clandestinos e sem registro;
- Ampliar e fortalecer a estrutura do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária em todas as esferas da gestão para que possa desenvolver de forma efetiva suas atribuições, assegurando mecanismos de controle social e gestão participativa;
- Definir a validade do registro dos agrotóxicos por cinco (05) anos, assegurando no quinto ano o processo de reavaliação;
- Combater a subnotificação de casos de contaminações por agrotóxicos, garantindo um processo amplo de orientação/formação a todos profissionais de saúde;
- Fiscalizar o cumprimento do código do consumidor para que todos os produtos alimentícios tragam no rótulo informação acerca da origem do alimento, incluindo o tipo de veneno utilizado e sua classificação;
- Criar e fortalecer centros de pesquisas e de análises toxicológicas do potencial cancerígeno dos agrotóxicos. Sistematizar e divulgar estas pesquisas em linguagem adequada para apropriação de informações pelo conjunto da população brasileira, em especial os trabalhadores(as) do campo e suas organizações, entidades e movimentos;
- Determinar o fim dos incentivos fiscais para a comercialização de insumos agrícolas baseados em produtos tóxicos e estabelecer incentivos fiscais para os produtos de origem agroecológica e ou orgânica;
- Criar políticas de incentivo à produção, aquisição e utilização de insumos agroecológicos e à produção de alimentos saudáveis, de modo a efetivar a implementação da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica;
- Criar programa nacional de controle que realize o cruzamento fiscal da comercialização e emissão do receituário agronômico.
 
Subscrevem a presente carta:
Ação Nascente Maquiné - Rio Grande do Sul
ACERT - Associação dos Colonos Ecologistas de Torres - Rio Grande do Sul
APATO – Alternativas para a Pequena Agricultura - Tocantins
Articulação Pacari
Centro Ecológico - Rio Grande do Sul
CIMQCB – Cooperativa Interestadual do Movimento das Quebradeiras de Coco Babaçu
CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
Cooperativa Central do Cerrado
Econativa - Cooperativa dos Produtores Ecologistas do Litoral Norte do RS e Sul de Santa Catarina
Ecotorres - Cooperativa de Consumidores de Produtos Ecológicos de Torres - Rio Grande do Sul
FBES – Fórum Brasileiro de Economia Solidária
FBSSAN - Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
GT Slow Food Queijos Artesanais
IEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil
IMS – Instituto Marista de Solidariedade
ISA – Instituto Socioambiental
ISPN – Instituto Sociedade, População e Natureza
MIQCB – Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu
Organização Cooperativa de Agroecologia - Minas Gerais
Rede Ecovida de Agroecologia
Brasília, 15 de agosto de 2014